Álcool, em nome da Justiça
*Por JOSÉ CARLOS DE REZENDE
Essa analogia é parte do voto do ministro Marco Aurélio, relator numa Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF, sobre uma lei que tenta proibir o amianto em SP. Pois a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) não apenas mostra desconhecer os princípios de Paracelso, como afronta o bom senso e o equilíbrio que norteiam as decisões do órgão máximo da Justiça brasileira.
Munida de falsos argumentos, a agência insiste na pretensão de determinar às donas de casa qual tipo de álcool consumir, de impor novos padrões de limpeza e de tentar proibir a venda de álcool líquido acima de 46º INPM; a partir daí, limitá-lo na forma gel.
Caso consiga ? o que é improvável, diante dos limites da lei -, fará do maior produtor mundial de álcool um dos raríssimos países a proibir o seu uso. Outra contradição da Anvisa também merece destaque: sustenta a tese da proibição, ao mesmo tempo em que recomenda o uso do álcool líquido em hospitais por ser mais eficiente que o gel na limpeza de objetos e superfícies. É muito estranho. Donas de casa de todo o mundo sabem disso há mais de um século. Há relatos do uso do álcool líquido como desinfetante desde 1888.
A agência se baseia em dados falsos fornecidos pela Proteste, que se auto-intitula "Associação Brasileira de Consumidores". Sabe-se que foi fundada por entidades estrangeiras e, na verdade, sua ação beneficia multinacionais do setor de limpeza. Evidente que o álcool, mais eficiente e mais barato, é forte concorrente dos caros produtos dessas empresas. Aí parece estar o motor desta infeliz polêmica. Uma pesquisa da Toledo e Associados prova que o consumidor prefere o álcool líquido, o último dos produtos de limpeza sem participação de grandes empresas multinacionais.
A Proteste publica nota para afirmar que o poder de limpeza do álcool é um mito; os produtores mostram publicações da Organização Mundial de Saúde, que comprovam a superioridade do álcool, seja líquido ou gel, sobre os demais desinfetantes. A Anvisa prefere o ?achismo? da Proteste ao rigor científico da OMS.
Também é falso o argumento de que a ocorrência de acidentes com álcool líquido atinja o número de 150 mil por ano no Brasil. De forma cristalina, dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS) revelam um número de casos de queimaduras com líquidos inflamáveis é mais de 50 vezes menor que o alegado.
São dados que englobam, além do álcool, todos os líquidos inflamáveis, como gasolina e solvente, entre outros. Que se traga a verdade, sem os enfeites da Anvisa: os números do SUS mostram uma média de três mil casos anuais de internação por exposição à combustão de todas as substâncias inflamáveis. Por isso, deve-se dar toda a atenção ao voto do ministro Marco Aurélio no caso do uso do amianto: ?O perigo resultante do manuseio inadequado do produto não pode consubstanciar premissa jurídica para retirá-lo do mercado, sob pena de se inviabilizar a vida em sociedade?...
Vale ressaltar que, se empregado na forma devida, o crisotila não traz qualquer risco ao usuário...?Se o amianto deve ser proibido em virtude dos riscos que gera para a coletividade ante o uso indevido, talvez tenhamos de vedar, com maior razão, as facas afiadas, as armas de fogo, os veículos automotores, enfim, tudo que, fora do uso normal, é capaz de trazer danos às pessoas?.
E o ministro põe aqui uma moldura em sua tese: ?Em outras palavras, entender que a ponderação, no caso concreto, deve levar à proibição do crisotila significa admitir que substâncias perigosas também possam ser proibidas mediante decisão judicial.
Para remate, deve-se lembrar as palavras do também ministro Antônio Dias Toffoli. Ao discorrer sobre o que mudou em sua visão nestes seus dois anos de STF: "Aqui penso que o Estado tem de interferir menos na vida do cidadão. O Estado tinha de educar mais do que tutelar".
Fica claro que a Anvisa parte da premissa de que a sociedade é incapaz de avaliar riscos e benefícios. E, arrogante, invoca parâmetro arriscado para o desenvolvimento nacional e para as liberdades públicas. Que a Justiça seja feita.
(*) José Carlos de Rezende é presidente da Associação Brasileira dos Produtores e Envasadores de Álcool ? Abraspea.
...