Rabos de Sereias
*Por Marli Gonçalves
Estou criando sereias. É isso mesmo. Não tem gente que conta carneirinhos, conversa com formigas? Pois bem, eu resolvi criar sereias. Era preciso diminuir a pressão, dar um tempo para a cabeça refrescar. Estando em São Paulo é difícil de se desconectar.
Ficando, o estado de atenção, aquele alarme sempre pronto a ser acionado, não pode ser deixado de lado, totalmente desligado. Mas pensando bem - vamos e venhamos e convenhamos - que a situação lá pelas praias também não está das mais tranquilas - o noticiário que sobe a serra parece muito com roteiros de filmes de terror ou de bang-bang. Daí, muito melhor criar sereias em ambiente seguro, virtual, controlável e na cidade grande, que a coisa não está para peixe.
Voltando às minhas sereias - já tenho mais de dez - devo dizer que cuidar delas está me ocupando muito e de uma forma muito especial nesses dias de folga. Eu as acordo, ponho uma a uma para trabalhar em busca de tesouros. Em geral elas acham e me devolvem toda sorte de lixos que foram jogados no fundo do mar, alguns até muito perigosos, como anzóis. pneus, botas e bicicletas velhas... E como elas, danadinhas, só saem para trabalhar com moedas adiantadas, levo muito prejuízo, porque, vendidos, o que faço na mesma hora, esses lixos não passam de 10, 15 moedas. (As sereiazinhas não vão nem até ali, nadando seus rabões, por menos de 60 moedas, o mínimo do "cachê"). Lá no reinado, parece a nossa vida aqui fora: lixo, para comprar, gastamos fortunas; e quando é para vender vemos muxoxo, valem pouquinho, inclusive as peças e os corais mais raros. E as mais gostosas (minhas sereias são bem gostosas) valorizam mais o seu cachê.
É legal vê-las passando, nadando, dançando com seus rabinhos coloridos - esqueci de dizer: cada um tem uma cor, um perfil, um enfeite; já vêm com nome, mas isso dá para mudar. Na ficha de cada uma, acreditem, tem até a "foto" das "amigas sereias" que cada uma delas gosta ou detesta - o termômetro da sua produtividade. Elas precisam estar bem felizes para depositar mais moedas no baú enquanto nadam. E eu preciso muito das moedas para gastar com elas. Preciso também de pérolas, mas essas são raríssimas de achar. Veja só, lembrei do mundo exterior novamente: tão raros como achar pessoas honestas, de caráter e amigos leais; tão raro quanto políticos preparados para exercer cargos importantes. Um grita, o outro não escuta.
Um jogo e tanto. Chama-se Mermaid World (O Mundo das Sereias) e é um aplicativo da Apple, grátis, que achei por acaso. Botei em meu IPAD e onde eu vou elas vão comigo.Sempre gostei de sereias, dos mitos ao seu redor, do canto irresistível aos marinheiros, aos homens, e não há fábula infantil melhor para mim do que A Pequena Sereia, aquela que depois de enfeitiçada e de ganhar pernas, sofria a cada passo, como se mil agulhas transpusessem seu corpo. Tudo para conquistar um tal príncipe. Insosso, tanto quanto o personagem da novela aí, que deve estar deixando sonolento até o Dragão do São Jorge.
Há muito as coleciono. Sereias vão ficar na moda sempre, com seus rabos majestosos. Ainda não contei como as minhas sereias surgem no marzinho particular dessa viagem, que me recuso a chamar de jogo. Você pode até comprar sereias, mas a forma mais legal é juntando duas das suas, que você escolhe. Aí elas vão cantar para chamar uma outra sereia. São 51 ao todo. (Ai, que saco, lembrei do mundo exterior e eu tinha me prometido esquecer do Lula). Mas são 51 mesmo e as mais incrementadas chegam a custar milhares de moedas. Cada Reino - você vai comprando espaços - é limitado a apenas cinco sereias e como são, mal ou bem, mulheres, acredito que quem criou o tal aplicativo ache que mais de cinco daria pancadaria ali no fundo do mar, e o que seria realista demais para um brinquedo virtual. Uma puxando o rabo da outra, já pensaram?
Descobri esses dias que para viver bem pelo menos com a gente mesmo e até com nossa criança interior, precisamos de alguma fantasia particular, seja ela qual for. E vou falar: cheguei a essa conclusão depois de assistir ao maravilhoso novo filme de Ang Lee, As Aventuras de PI. Por incrível que pareça, foi a imagem dele, PI, um garoto ainda, náufrago, convivendo com um tigre, no meio do oceano e girando medusas brilhantes quem me lembrou disso. Melhor que foi antes de um naufrágio. Porque as sereias não existem; não podem salvar ninguém.
*Marli Gonçalves é jornalista
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