Chutes no nosso Brasil
*Por Marli Gonçalves
Foram vários seguidos. Ela, com aquele jeito gracioso de andar, no meio do gramado, cercada de homens, pega a coitada da bola e chuta, inaugurando os estádios incompletos, para a foto, para acalmar aquele povo que queria chutar nossos traseiros. Descobri um de nossos grandes problemas: os chutes. As obras e mudanças estruturais sendo chutadas o tempo todo para a frente ou para escanteio. Ou empurradas com a barriga. O chute, assim como o jeitinho, é coisa bem brasileira
Ora com a direita, ora com a esquerda. Sempre de rasteirinha. A presidente Dilma faz uma metáfora e tanto quando anda por aí chutando bola, inaugurando estádios, jogando para a torcida, correndo para a galera, e tentando nos convencer de que o país está preparado para o que der e vier. Para a Copa do ano que vem. Para essa Copa agora. Para as Olimpíadas. Para o papa, para o petróleo, para escoar a safra de grãos e desentupir os portos, para as crises econômicas do mundo todo, entre outras hecatombes, inclusive ambientais, que não devemos temer. Nada. A coisa está tão boa, mas tão boa, que dá para financiar hospital na Palestina, oferecer dinheiro na Etiópia, empregar médicos de Cuba, Espanha e Portugal. Simples assim. Chuta.
Aliás, o chute está bem na moda e espero que vocês tenham reparado. Finalmente ele ultrapassa o limite barato do chute a gol do futebol e avança corajoso entre nós. Não foi com um chute só que o Vitor Belfort derrubou o opositor, Luke Rockhold, outro dia? Um só no queixo. Nocaute. É tanto chute que os aeroportos e outros pontos do país estão sendo forrados de cartazes verde e amarelo bem ufanistas, e mais um slogan federal criado em selo e prosa: "Brasil 2014 - A Pátria de chuteiras". Chutaram até isso. Nelson Rodrigues, citado como inspiração para tal lampejo criativo, escreveu outra coisa. O título de sua coletânea de crônicas sobre o futebol é A Pátria em Chuteiras. Mas quem há de reparar?
Só nós, chatos de plantão, que não vemos as coisas boas, o progresso da nação, a entrada de milhões num sei aonde, saídos de uma linha da miséria, blábláblá. Deve ser só na nossa casa, nas imediações de nossas casas ou onde escolhemos para fazer compras, que a inflação está corroendo tudo, onde, inclusive, todos os produtos da cesta básica que anunciaram que iam baixar, subiram. Que a gente não precisa mais nem usar saquinho de plástico e não é para não poluir - compramos tão pouco que carregamos nas mãos.
Chutam índices, chutam previsões, chutam projetos e decretos goela adentro da sociedade e de sua base aliada que agora nem mais lê! Prá quê? Chutam indicações, chutam mais que cartomante bandida na frente de rico. Chutam nossa paciência e o pouco de orgulho que ainda nos resta. Aí a coisa pega e quando você vê, percebe quanta coisa é chutada. O pastor chuta a santa; anos depois, infelicianamente, vem outro pastor e chuta nossa inteligência sem dó. Chutam a previsão do tempo, os resultados do jogo, os números de tudo, das passeatas, marchas e inclusive os da violência que está nos chutando para dentro de casa. Ficamos recuados, na defesa, em nossas áreas, rezando para ninguém entrar chutando e matando.
Chutam as pessoas para intimidá-las, roubá-las nas ruas. Estudantes chutam nas provas, e de repente acertam para continuar chutando em seus ofícios, ensinados aos chutes por professores que chutam o pau da barraca por causa de baixos salários. Chutam uns para os outros, como se a bola queimasse os pés, e ninguém quer estar com ela na hora do apito final, apontando-se uns aos outros, céleres, como dedos-duros.
Chutam o pau da barraca, o cachorro morto e o cachorro vivo, que agora anda sobrando até para os coitadinhos amarrados em linhas de trem, enterrados vivos por quem chuta qualquer coisa que apareça. Chutam latas, chutam macumba. Chutam em inglês, espanhol, chinês, japonês. Chutam nosso português. Chutam até que sabem o que estão fazendo. O problema real é nosso: nós é que não sabemos mais o que fazer para chutá-los para fora desse campo.
*Marli Gonçalves é jornalista.
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