Flexes ou flashes
* Por Marli Gonçalves
Perdi a hora umas duas vezes esta semana, porque na hora de acordar estava sonhando e os sonhos eram bons. Ou estranhos, mas bons. E sonhar na hora de acordar é como se você tivesse mais alguma coisa para fazer ali na caminha, aninhado, com os olhinhos fechados. Neles, nos sonhos, eu viajava, tinha dinheiro, tudo estava legal, aparecia gente bacana, amigos e amores. Mas é só acordar que a coisa começa, até porque tenho o hábito de ligar o rádio - para ouvir música, só que as notícias logo aparecem. Aí vou ler o jornal. Pronto, começou o dia. E acabou o dia.
Os helicópteros sobrevoam, dando barulhentas voltas, na região da Avenida Paulista. As sirenes dos carros de policia se intensificam. As manifestações agora começam mais cedo, o que faz pensar que é preciso ser muito ativista para já estar por ali gritando às nove horas da manhã. A cuidadora de papai informa que na distante região de onde vem, já viu quando saiu de madrugada de casa para se aventurar atrás de transporte coletivo, um ou dois ônibus queimados, ou carros estropiados de bêbados entortando os postes na madrugada. PCC dando ordens. Ela tem olheiras: bailes funk com tudo aquilo, na rua, e não adianta chamar a polícia. Não adianta chamar ninguém. Ficam ao Deus-dará.
Mais de 200 meninas sequestradas na Nigéria, de dentro de uma escola, e que ninguém sabe onde estão, tipo avião da Malásia. Se hoje Caetano compusesse, perguntaria, para que tantos satélites, ao invés de quem lê tantas revistas. Tudo de baciada: 250 presos na Venezuela. Outras centenas perdidas em deslizamentos, guerras particulares, aqui, ali, acolá. Líderes mundiais e formadores de opinião só segurando cartazes bonitinhos, posando para fotos. E mais flashes espoucando. Hora do banho e a água já está com vazão menor. Ensaboa, morena, ensaboa, enxagua, tô enxaguando. Abre e fecha torneiras. Mas não consigo deixar de pensar em quanta gente ainda vejo varrendo calçada com água, lavando carros, mandando beijinho no ombro.
Um boato. Um retrato falado. Um zumzumzum, a total falta de noção e uma mulher é espancada por dezenas de pessoas, arrastada como bicho, agredida até a morte em um das cidades mais chiques do litoral paulista, e não, não foi tão lá na periferia onde isso ocorreu, que eu vi no mapa. Foi onde uma vez há muito anos o prefeito da ocasião queria fazer uma "cortina verde" para que os turistas não vissem as casas subindo os morros na avenida paralela às principais praias. Achava que daria votos. Ninguém me contou. Foi para mim e meus ouvidinhos que ele fez essa sugestão, batendo no peito como se tivesse tido a grande ideia de sua carreira política, obviamente já fracassada. Até hoje enjoo só de pensar nesse dia.
Crianças matando crianças. Meninas espancando meninas com pauladas e pedradas, por causa de moleques, namorados, boatos e fofocas. Moças estupradas e assassinadas e ainda picotadas por maníacos que encontram desgraçadamente em seus caminhos de ida ou vinda. Corpos achados em rios. Mães desesperadas. Crianças sendo mortas por dinheiro, ciúme, vingança. Mulher põe fogo na casa, com o marido dentro, mas antes quebra tudo, porque viu mensagem de outra no celular. Não, não estamos em filmes do Batman, nem do Charles Bronson. Os sons são reais, as armas atiram pumpumpum. Vingadores surgem de todos os cantos como justiceiros, acreditando que devem botar para quebrar. E quebram. Inclusive pela política, pelo teto, pela terra. O cheiro pestilento da morte, o ar seco, os ídolos morrendo. A arte ficando mais pobre.
Porque que agora me lembro de ter lido, logo cedo, numa matéria de jornal, o relato de uma das jornalistas sorridentes que jantaram com a presidente no palácio, selfie para lá, selfie para cá, que a Dilma faz álbum de figurinhas com o neto, conhece a letra da Galinha Pintadinha, cantarola e tamborila com os dedos na mesa "Atirei o pau no Gato, totô, mas o gato-tô não morreu..."? Ah, ainda tem as manchetes políticas, mas tenho de começar o dia, e já estou cansada de tanta notícia. Pior, vivo disto. São Paulo, 2014, menos de um mês para a gente saber que bicho vai dar no Fuleco.
*Marli Gonçalves é jornalista.
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