Baques
*Por Marli Gonçalves
Tem sido um após o outro. Nunca achei tão difícil como agora lidar com eles. Talvez porque venham em série e não tem dado tempo da gente se recuperar direito. Talvez porque eles tenham justamente como característica o susto, a falta de preparo, serem sorrateiros ou inexistentes até explodirem - exatamente o que faz com que certos fatos sejam um baque, o tal. Baques tonteiam. Ficamos "abestados" quando baqueados. Eu ando embasbacada. Você também deve andar, porque está difícil. Quer saber mais ou menos do que estou falando? Pensa nos sete gols que tomamos da Alemanha. Foi ou não foi, melhor, foram ou não foram baques, sete baques que nos deixaram com a cara mole, como se todos estivéssemos dentro de um saco de areia pendurado, socado sem dó? Só que aconteceu e há dias estamos de alguma forma tentando lidar com isso, quase que dissecando os fatos que levaram a isso.
Baque é igual terremoto. O chão parece sumir de debaixo dos pés. A cabeça zune e você simplesmente não quer acreditar, mas aquilo aconteceu, mesmo, confirmado. Você pode até estar vendo acontecer e não acreditando, até que alguém venha dar um beliscão ou um tapa para que saia do estado catatônico. O coração parece que vai sair pela boca e os próximos minutos serão muito estranhos, porque variarão da apatia ao desespero e descontrole. Vivemos aos baques. E quando morremos causamos baques.
Essa semana terrível começou com um desses baques, enorme e inacreditável, em torno da morte da amiga Vange Leonel. Sei que quem está na chuva é para se molhar, e que quem está vivo pode no instante seguinte virar só alma. Mas desta vez veio mais ainda no susto, e isso de alguma forma especial me afetou profundamente. Distraída, passava os olhos no Twitter e a primeira mensagem dizia "Morre a ativista, cantora, escritora e compositora Vange Leonel..." Durante alguns segundos, até ler mais abaixo um outro tuite, dessa vez de sua companheira, outra amiga de algumas dezenas de anos, pensava ainda que era uma brincadeira mórbida. Ainda duvidei outros minutos até conseguir telefonar e, sim, tinha acontecido. Foi um baque. Perplexidade. A partir daí conheci uma das maiores dificuldades que já tive para lidar com o choque, com o susto, com uma situação, embora já tenha passado por outras até piores. Precisei parar para pensar. Na fragilidade. De tudo, de todos. Mais: de nós todas, de gente de nossa tribo, que viveu vida parecida com a nossa.
Vange, 51 anos, mulher, vida saudável, para cima, bem amada. De repente, a descoberta de um câncer e, em vinte dias, o fim, como soube depois como ocorrera. Não a via pessoalmente há algum tempo, mas estávamos sempre ali, por perto, pelas redes sociais, redes que às vezes nos enganam tal a proximidade que parecem oferecer, mas muito longe da vida real de carne e osso. Escrevo pensando quantas vezes você aí também pode ter tido essa estranha sensação de não saber lidar com algo, não conseguir lidar. Se pudéssemos nos refugiar em algum outro mundo. Cair em algum buraco de Alice que nos levasse a outro país! Como a realidade pode ser tão dura?
Acredito que tenhamos algum dispositivo que se aciona em determinadas ocasiões. O meu fez com que eu chorasse copiosamente durante horas, como se todas umas lágrimas guardadas para o caso de racionamento transbordassem incontrolavelmente. Há quem grite. Outros desmaiam. Outros começam a rir nervosamente. E há quem apenas mantenha a frieza. No meu caso chorei porque sabia que havia partido uma grande mulher, solteira, sem filhos, como eu, libertária outro tanto, com um monte de conhecimento que não foi reconhecido em vida pela hipocrisia de uma sociedade moralista que não mostra sua cara de forma aberta. Sim, morreu, virou noticia de primeira página, todos os portais, o mínimo que merecia. Agora a imagino apenas dando uma gostosa gargalhada, brincando de alisar o bigode que às vezes colocava para sair por aí, de onde estiver, se pode saber disso, rindo de todo o alvoroço que causou.
Um baque. Baque também é barulho. Som de maracatu. Tem o baque virado, o baque solto. É queda, que podia ser também queda de todos os preconceitos. Vivemos aos baques e solavancos, mais ainda caindo nos buracos das ruas. Tomamos um quando recebemos as contas que não sabemos como pagar. Ficamos baqueadas quando sabemos de traições, quando nos damos conta de que não nos dão valor, quando lemos os jornais do dia a dia. Baqueamos quando vemos que é preciso morrer para que o porque tanto lutamos seja pelo menos visto. Ou comentado.
*Marli Gonçalves é jornalista.
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