ÓRFÃOS FUNCIONAIS
ÓRFÃOS FUNCIONAIS
* Adilson Luiz
No século XIX, Charles Dickens, Mark Twain, Victor Hugo escreveram ao menos um livro cujo protagonista era uma criança órfã. Seus personagens não eram ?apenas? órfãos: além da falta dos pais, sobreviviam em situações de pobreza extrema, abusados ou coagidos por valentões de guetos ou diretores de orfanatos, quase sempre figuras caricatas e sádicas. Naqueles tempos, vilão tinha que ser uma encarnação do demo! Mas sabemos que quase nunca é assim: eles são mais discretos e até socialmente bem posicionados e celebrados.
Em contrapartida, sempre havia um protetor, que, ao final, salvava a criança de todos os perigos. Eram pessoas que assumiam uma paternidade que não era sua e, a partir daí, cercavam-nas de todos os cuidados e responsabilidades que pais conscienciosos têm em relação aos filhos.
Li esses livros numa época em que os valores familiares estavam sendo desnecessariamente assediados pela onda de liberalidade dos anos de 1960. Muita coisa precisava ser mudada, não há dúvida: ?tradições? e ?convenções? sociais encobriam violências que destruíam vidas; mães e pais vilões transformavam a vida de seus filhos em purgatórios sem fim. Mas destruir a noção de família não era a solução: era preciso mudar seu conceito.
Bem, mas a idéia de ter pai e mãe persistiu como fórmula básica para a criação de filhos, enquanto a orfandade continuou cercada por todos os riscos dos enredos dos livros. A diferença é que, hoje, encontramos situações semelhantes mesmo entre os não-órfãos: Várias crianças têm pais e mães, mas é como se vivessem em total abandono. Usam roupas de grife; estudam em escolas caras; têm tudo o que querem ao ponto não darem valor a nada; mas não têm conselho, carinho ou sequer um mínimo de atenção. São ?órfãos funcionais?!
Podem se drogar, mesmo em casa, que ninguém nota; gritar como insanos, bater portas e colocar aparelhos de televisão e som no último volume, que ninguém está perto para ao menos tentar entender o que está acontecendo. E ainda que note, dificilmente reconhecerá suas falhas, como pais. Talvez coloquem seus filhos em escolas ou clínicas, exigindo que educadores e terapeutas tentem desentortar o ?pepino? que sua omissão, permissividade ou egoísmo gerou. Outros, só lembrarão que os têm para apagar os ?incêndios? que eles ateiam, para chamar sua atenção. E muitos o apagarão por vergonha ou para evitar escândalos, e não por amor. Mas, passada a turbulência, esses filhos subitamente ?adotados? voltarão ao estado de ?orfandade?.
Esses são órfãos do egoísmo paterno: aquele de pais que têm filhos para exibir à sociedade; que não abrem mão de nada em sua vida pessoal, para cuidar deles; que são capazes de violentá-los, por mórbido prazer; que abusam psicologicamente deles, exigindo o que nunca deram ou darão; que pagam pelo ?sossego?, fechando os olhos para desvios de conduta.
Os tempos mudaram: o mercado demanda produtividade e consumo. É preciso ter mais de um emprego, formação continuada. Além disso, ?tempo é dinheiro? e a sociedade vive de aparências. Mas não há dinheiro ou posição social que compense as conseqüências da omissão paterna. ?Pit boys?, ?play boys?, membros de gangues e ?tribos?, vândalos, drogados... Todos são um pouco órfãos, mesmo quando têm pais. Políticos corruptos e fanáticos de toda espécie, também, devem ter sido.
Dizem que criamos os filhos para o mundo... Sendo assim, é temerário deixarmos que um mundo que precisa urgentemente ser mudado os crie. É preciso que assumamos nossa paternidade e os eduquemos, com amor e bom senso, para que eles ajudem a transformá-lo!
* Adilson Luiz Gonçalves é Mestre em Educação.
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