SABOR E SABER
SABOR E SABER
* Adilson Luiz Gonçalves
Eu mal recebera o diploma do Curso Primário (1ª a 4ª séries do atual Ensino Fundamental), concluído em escola pública, quando anunciei aos meus pais que não queria mais estudar. Eu tinha 10 anos de idade, então.
Alguém pode imaginar que eu era um péssimo aluno, e que a escola, nessas circunstâncias, seria um fardo para mim.
Bem, quem pensou assim errou na primeira hipótese (fui o primeiro da turma nos quatro anos), mas acertou em cheio na segunda. Tirando o primeiro ano, os três seguintes foram um ?saco?. Eu aprendi muita coisa, é verdade; mas não havia prazer no processo, nem gosto de ?quero mais? no ambiente escolar. Eu tive professoras e diretora cujos nomes e sobrenomes lembravam flores, luzes e frutas, mas a forma como desempenhavam suas funções estava mais para um obscuro e amargo ?jiló?.
Meu pai não disse uma única palavra; simplesmente apareceu em casa com um livro preparatório para o exame de admissão ao Ginásio (atuais 5ª à 8ª séries do Ensino Fundamental), e todo o sábado me tomava lições. A intenção dele era clara: ele queria que eu entrasse numa das melhores escolas públicas (referências, na época), e isso só era possível mediante concurso.
Meus pais sempre deram muita importância aos estudos dos filhos, apesar de não terem recebido o mesmo incentivo de meus avós, pelas limitações financeiras e falta de perspectiva de ascenção social e profissional de seu tempo. Assim, nas reuniões familiares era comum minha mãe perguntar aos sobrinhos sobre escola. Esse assunto, no entanto, deixou de ser abordado quando uma tia, de forma grosseira, sentenciou que ?filhos de pais burros não poderiam ser inteligentes?, na frente de meus primos...
É certo que minha mãe transparecia o orgulho que sentia do desempenho escolar dos filhos, mas, por mais que minha tia se sentisse incomodada com isso, eu não consigo conceber pais que reprovem os filhos antes que eles tenham a oportunidade de demonstrar sua capacidade. Talvez essa descrença paterna seja a maior mágoa que um filho possa ter na vida!
Pensei que isso fosse coisa do passado, até que uma colega do Programa de Mestrado em Educação, da UNISANTOS, relatou que ouvira uma mãe dizer que não matricularia seu filho na que era considerada a melhor escola pública de sua cidade, porque ele não ?dava para o estudo?...
Chegar a uma conclusão dessas sobre os filhos e, pior, tomar decisões desse tipo é, em certa proporção, como decretar a morte cerebral dos filhos! Felizmente, muitos sobrevivem a esse tipo de eutanásia, geralmente salvos por professores que aprendem a dar sabor e prazer à sua profissão. Professores que descobrem nos alunos aquilo que os pais, por ignorância, comodismo, oportunismo ou egoísmo não conseguem ver: potenciais. Os pais podem não ter percepção ou formação para tanto, mas não têm o direito de comprometer o desenvolvimento dos filhos e condená-los à mediocridade.
Eu passei no exame de admissão, e continuei a ter bons e maus professores. Quando terminei o curso, meu pai sugeriu que eu fizesse o Colegial (hoje Ensino Médio) profissionalizante, numa conhecida escola estadual; e lá fui eu fazer mais um exame de admissão: o chamado ?vestibulinho?. A partir daí, eu passei a buscar meus próprios caminhos e, desde então, nunca mais parei de estudar e de buscar tempêros que dêem sabor de ?quero mais? ao saber, para mim e para os outros, como vive a exortar nossa querida professora Maria de Fátima Abdalla.
Sei que essa busca nunca terá fim, pois os gostos mudam com o tempo e conforme os contextos; mas uma coisa é certa: precisamos, na medida do possível, oferecer todo o cardápio aos nossos filhos e alunos. Não podemos, como pais ou professores, limitar nossos filhos e alunos a nós mesmos, nem torná-los herdeiros ou escravos de nossos medos, frustrações, fracassos e limitações, ou de nossa presunção e arrogância. Pelo contrário, precisamos, primeiro, conduzi-los para, depois, seguí-los; e isso só será possível se também oferecermos esse banquete a nós mesmos, não como estratégia de sobrevivência, mas como projeto de vida, nosso, e ponto de partida, dos que ensinamos, no lar ou na escola.
A vida é feita de obstáculos que são comumente criados por interesses de poder: familiar, religioso, econômico e político. Cabe aos pais e professores esclarecidos, saberem dosar prática e utopia, para serem parceiros das novas gerações na transposição dessas limitações toscas, que tolhem o desenvolvimento pessoal e a evolução da humanidade.
Dar sabor ao saber, e se lambuzar dele: essa é a base de tudo!
Adilson Luiz Gonçalves
Escritor, Engenheiro e Professor Universitário (UniSantos e Unisanta)
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